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Transformação.



No princípio eu era uma flor. De algodão, bailando ao sabor do vento, do sol, da chuva e das noites enluaradas.
Mãos se aproximaram e me colheram junto com outras de mim. Fui parar em uma roca e me transformei em um fio do urdume e fui tinto com um corante azul. Dali segui para o tear e adquiri a forma de um pano. Longos metros de tecido. Mãos me dobraram e me colocaram em um fardo.
Dias depois fui transportado para o interior de um navio cargueiro. Não sabia se era noite ou dia, tudo quanto sabia é que me sentia enjoado com o vai e vem das ondas do oceano. Passei um longo tempo nesta agonia até que o navio atracou em um porto. Parece-me que era de Santos. Dali fui transportado no interior de um carro até chegar em uma fabrica de roupas.
Novamente as mãos rudes de um rapaz desconhecido me retiraram do fardo. Ele me esticou sobre uma mesa, me riscou e depois com a ajuda de uma tesoura fez pedaços de mim sem se importar com a minha dor. Da mesa fui levado para uma máquina e tive de me segurar para não gritar de dor enquanto a agulha me furava e nos furos a linha ia me segurando. Era um processo de ganhar uma forma. O que foi feito dos outros pedaços de mim eu não sei...
Após ser retirado da maquina de costura ainda fui submetido a outra tortura. Fui alisado por um ferro muito quente. Queimou sabe? E doeu. Então as mãos me dobraram e me colocaram em um monte de outras peças já costuradas. Me tornei apenas em mais um no meio da multidão.
Alguns dias depois um homem com bigodes entrou na fábrica e comprou o lote de peças no qual eu estava. Ele nos transportou para o porta malas do seu carro e nós seguimos viagem. Não tenho relógio, mas sei que a viagem foi longa. Era um tal de frear e seguir e de chacoalhar em determinados trechos do caminho que me deixavam atordoado. Era uma cidade grande pois eu ouvia o som de muitos veículos, buzinas, apitos e xingamentos de um motorista para o outro.
O carro parou e fui levado para dentro de uma loja.  No dia seguinte fui retirado do fardo. Me colocaram em um manequim e fui para a vitrine. Exposto. Para que eu não sabia. Só sei que as pessoas paravam, olhavam e seguiam o seu caminho. Algum tempo depois, uma moça entrou na loja e conversou com o vendedor.
- Por favor, quero provar aquela calça jeans da vitrine. – E apontou para mim. Uau, descobri quem sou. Uma calça jeans! O que é calça jeans? Para essa pergunta eu não obtive resposta. Ela me levou para o interior do provador e me vestiu. Aderi bem ao seu corpo. Através do espelho ela me olhou em diferentes ângulos até assentir com a cabeça.
Sai da loja carregada em uma sacola. Sim, carregada porque sou uma calça. Neste dia a minha aventura de vida teve seu início.
Pensa que foi fácil? Nem um pouco. Chegando em casa ela me botou dentro de uma caixa que se encheu de água e a nova tortura começou. Em meio ao sabão era girada de um lado para o outro e isto me deixava tonta. Agora, tonta mesmo eu ficava quando aquela caixa me torcia. Era o processo da centrifugação. Dali eu era retirada, chacoalhada e pendurada em um varal. Depois de seca lá vinha a tortura do ferro de passar.
Minha vida ao lado da moça foi longa e cheia de aventuras. Ela morava sozinha. Seus pais eram do interior e bancavam a faculdade e o apartamento.
Fomos para a faculdade. Quantas vezes? Perdi a conta, mas, aprendi muitas coisas, inclusive fiquei sabendo que ela estudava engenharia. Ela gostava dos cálculos. Já eu preferia ajudar o povo de humanas a fazer miçangas.
Passear no shopping? Fomos. Diversas vezes. Ali íamos ao cinema, depois dávamos um role pelas lojas. Na maioria das vezes ela nada comprava. Era só para ver as vitrines mesmo. Um pouco antes de voltar para casa ela passava em um restaurante e comia alguma coisa.
Fui a festas com ela. Muitos tipos de festas. Algumas eu curtia, outras detestava, porém, como determinar as minhas preferencias se as preferencias eram as dela?
Igreja? Não. Ela não frequentava nenhuma.
Teve um dia muito legal. Ela e um bando de amigas resolveram acampar na praia. Amei conhecer o mar. Como? Ela ia de calça à praia? Não! Ela usava biquíni. É que a noite ela e as amigas iam caminhar pela orla do mar. Foi assim que eu o conheci.
Outro dia inesquecível foi quando ela me levou para conhecer o horto florestal. O jardim botânico? Também conheci. Zoológico não.
Teatro era outro lugar muito especial. Nem era sempre, talvez uma vez por mês. É que as vezes ela não me vestia.
Assim minha vida seguiu, entre risos e lágrimas da moça. Até aquele fatídico dia em que voltávamos da faculdade. No meio do caminho ela tropeçou e ia cair não fosse o fato de ter se segurado em uma grade. Porém torceu o pé. Agachou para recolher os livros e eu me esgarcei em um local muito íntimo. Morri de vergonha por deixa-la na mão. Com o pé torcido ela andava com dificuldade. Foi meio que arrastando até chegar em casa. Ali ela me despiu e enfaixou o pé no qual ela passou uma pomada, ciente de que não era nada grave. O grave mesmo foi no outro dia. Ao inspecionar o estrago que eu havia sofrido, a moça decidiu que eu não mais lhe servia. Sniff.
Voltei a fazer parte de uma sacola de roupas a serem colocadas no lixo. Era o meu fim. E assim seria se ela não ficasse sabendo de uma artesã que reciclava jeans. Fui doada para essa mulher. Ela me cortou em dois pedaços e me transformou em dois aventais. Com as pernas ela fez os aventais de corpo inteiro.  Com o restante ela criou uma bolsa.
Prossegui existindo. A bolsa voltou para a minha antiga dona, e hoje ando pendurada em seu ombro carregando uma verdadeira parafernália. Bolsa de mulher...  Bom, isto já é uma outra estória. Quem sabe um dia eu a conte. Os outros dois pedaços de mim foram comprados por duas mulheres diferentes. Ornamento o ventre de uma gestante, ela espera gêmeos, e de uma moça que fabrica deliciosos brigadeiros.
Sou feliz.


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